
Dez curiosidades sobre “Obscured by Clouds”
Confira algumas histórias do álbum do Pink Floyd “obscurecido pelo lado escuro da Lua”
Fosse um filho do meio, “Obscured by Clouds“, que “soprou 51 velinhas” hoje (lançado em 2 de junho de 1972), reclamaria que não foi recebido com o mesmo orgulho do primogênito nem com as facilidades do caçula, quando os pais já estavam ricos. Seria um trauma bem embasado, mas a terapia mostraria que o “fim do infância” tem feito muito bem ao seu legado, já que é uma “gema oculta” para os fãs dedicados. Essa é a herança que queremos resgatar com algumas de suas histórias, contribua também aqui nos comentários do site ou em nossas redes sociais.
Trilha Sonora
O sétimo álbum de estúdio do Pink Floyd foi composto e registrado em apenas duas semanas (com uma turnê japonesa no meio do trabalho), foi produzido pela própria banda e é a trilha sonora do filme francês “La Vallée” (o vale), do diretor Barbet Schroeder. A banda parou no meio as gravações de “Dark Side of the Moon” em Londres e voou para os estúdios “Strawberry“, que ficam em um castelo do século XVIII no norte da França, o “Château d’Hérouville”. Cerca de um mês antes, Elton John gravou no mesmo local seu primeiro álbum a ficar em primeiro lugar nos Estados Unidos, “Honky Château” (cujo nome vem justamente do castelo), e que contém uma de suas mais famosas músicas: “Rocket Man“.

Marcou a quarta participação do quarteto na área cinematográfica, mas apenas a segunda (junto com “More”) a ser lançada sob o nome “Pink Floyd” (o filme “Zabriskie Point” produziu um álbum próprio com apenas três das faixas do grupo e a trilha de “The Committee” só recebeu lançamento oficial em 2016 como parte do box “The Early Years“).
“Foi jogo rápido”, disse Gilmour. “Sentamos na sala, escrevemos, gravamos, como linha de produção. É bom trabalhar sob condições restritas de tempo e tentar ir ao encontro das necessidades de outra pessoa”.
“Essa é a coisa chata: perceber que a diferença entre algo que demoramos duas semanas para fazer e algo que levamos nove meses não é assim tão grande”, admite Nick Mason. “Quero dizer, a coisa que levamos nove meses não é 36 vezes melhor. O que me impressiona hoje é o fato de que o material que finalizamos ficou muito bem estruturado. Uma série de canções foi produzida, mas a minha percepção é de que o título delas foram apressadamente alocados sob a pressão de cumprir o cronograma do filme”.
Ao contrário de “More” (também dirigido por Schroeder), filme e álbum têm nomes diferentes devido a um desentendimento entre a banda e a produtora cinematográfica.
Enredo
Também escrito pelo diretor, o roteiro é sobre Viviane (a atriz Bulle Ogier), infeliz esposa do cônsul francês na Austrália, que viaja para as matas da Nova Guiné em busca das penas de uma ave raríssima, que ela espera revender na sua butique em Paris. Na ilha, ela conhece Olivier (Michael Gothard), líder de um bando de mochileiros hippies, que a convence a buscar a rara plumagem no vale secreto que nomeia o filme. Na jornada pelo desconhecido, encontram um dos povos mais isolados do planeta e, a partir da motivação inicial puramente materialista, a busca transforma-se em uma exploração espiritual de autoconhecimento ao mudar o objetivo por uma espécie de paraíso terrestre oculto.









Bastante elogiado pela filmografia e imersão em paisagens belíssimas, as temáticas sobre liberdade sexual, alteração da mente e busca de um shangri-la de convivência harmoniosa entre as pessoas já estava uns quatro anos atrasada e na década errada.
“La Vallée” tem uma avaliação de 6,4/10 no IMDb e aprovação pública de 59% no Rotten Tomatoes.
Faixa Faixa
01. Obscured by Clouds
Embora creditada apenas a David Gilmour e Roger Waters, a faixa-título é um instrumental sinistro que sugeria a reunião de nuvens de tempestade. Começa e é marcado pelo sintetizador analógico portátil VCS 3 recém-comprado da BBC por Rick Wright e que teria destaque nos dois álbuns seguintes, “Dark Side of the Moon” (1973) e “Wish You Were Here” (1975). Nick Mason toca uma de suas primeiras baterias eletrônicas (“eram como bongôs eletrônicos, não tão avançada quanto as que vieram depois”). O nome dessa música (e do álbum) aparece escrito em um mapa marcando o local do tal vale que nomeia o filme em francês, que seria um paraíso secreto “obscurecido pelas nuvens” (clique na imagem acima para assistir a cenas do filme).
02. When You’re In
Também instrumental, é uma espécie de segunda parte da faixa anterior, mas agora creditada aos quatro integrantes. As duas eram tocadas juntas como abertura dos shows da turnê “Dark Side of the Moon” em 1973 e faziam parte do repertório tocado na colaboração com o Balé Nacional de Marseille. O nome da música (“quando você está dentro”) veio de uma frase constantemente proferida pelo roadie (funcionário de turnês) Chris Adamson (é dele a voz na famosa frase I’ve been mad for fucking years… – “eu fui louco por malditos anos” – que abre “Dark Side of the Moon”). “When You’re In” foi apresentada magistralmente no Carnawall 2014 pela banda gaúcha “Pink Floyd das Antiga” (clique na imagem acima para assistir).
03. Burning Bridges
Letra de Roger Waters e melodia composta em um órgão Hammond por Rick Wright, que divide os vocais principais com David Gilmour, separadamente e também em dueto. Apresenta certa irmandade com “A Pillow of Winds“, do álbum anterior, incluindo o uso da técnica de slide na guitarra, que Gilmour ainda desenvolveria muito e apareceria em grandes clássicos. “Burning Bridges” começou a ser tocada em 2022 na “Echoes Tour“, dentro do projeto “A Saucerful of Secrets“, do baterista Nick Mason (clique na imagem acima para assistir).
04. The Gold It’s in the…
Um dos baratos desse álbum é a presença de canções mais diretas, bem diferentes de tudo que o Pink Floyd fez antes ou, principalmente, faria depois, e aqui está um ótimo exemplo com estrofes e refrão agitados permeados por base forte e fraseados de guitarra por toda sua extensão. Embora as reticências no título sugiram que alguém não conseguiu terminar a frase e revelar a localização do ouro por ter, bem… morrido, a letra é bastante otimista e não trata nada desse – talvez – final mórbido da história bem ao estilo do humor inglês. É apenas um aventureiro convidando amigos a uma jornada na qual ele irá de qualquer forma (clique na imagem acima para ver um clipe com cenas da gravação do álbum na França).
05. Wot’s… Uh the Deal?
O título apresenta uma pergunta de forma bem informal e reticente, aparentemente por ser um suborno para se entrar em um lugar reservado: traduzindo livremente é algo como “mostra a grana (ante do título), qualé… ah, o esquema?”. Segundo o autor Roger Waters, descreve “o aproveitamente de certas oportunidades que a vida oferece e como elas afetam uma pessoa mais tarde”. Em 2012, na finada rede social Orkut, foi proposto por um integrante da nossa comunidade que a principal atração daquela edição do Carnawall (a banda Pink Floyd São Paulo) tocasse uma faixa considerada “lado B” (menos conhecida) do Pink Floyd; com a aprovação deles, fizemos uma enquete que teve “Wot’s… Uh the Deal?” como inconteste vencedora e que foi executada lindamente no evento (infelizmente não temos vídeo desse momento). É uma das mais valiosas joias do álbum e nunca foi tocada ao vivo pelo Pink Floyd, mas justiça foi feita quando David Gilmour a resgatou em 2006 na sua turnê “On an Island” (clique na imagem acima para assistir).

06. Mudmen
Terceira peça instrumental, apresenta uma melodia parecida com a de “Burning Bridges” com fórmula de compasso alterando de 6/8 para 4/4), podendo ser um desenvolvimento da mesma peça que foi editado em duas faixas. Foi a última música creditada à dupla Wright/Gilmour até “Cluster One”, lançada 22 anos depois, no álbum “The Division Bell”. Acredita-se que foi inspirada nos “Homens de Lama” (mudmen) de Asaro, na Nova Guiné, onde se passa o filme. Diz a lenda que uma vez, quando a tribo local foi atacada, aqueles que não foram mortos ou capturados fugiram para o rio Asaro para se esconder. Lá, eles ficaram cobertos pela lama branca. Quando o crepúsculo caiu, decidiram voltar para sua aldeia, ainda tintos pelo sedimento claro – embora não deliberadamente. Quando a tribo inimiga, ainda na aldeia, os viu, fugiu acreditando que fossem espíritos vingadores dos aldeões que haviam matado anteriormente. Tempos depois, acreditando que a lama do rio era venenosa, o povo Asaro parou de cobrir o rosto com ela e passou a fazer máscaras de argila (foto).
07. Childhood’s End
O título foi tirado de “O Fim da Infância“, livro de Arthur C. Clarke (mesmo autor de “2001“), embora não haja relação entre a ficção científica (sobre uma dominação alienígena na Terra) e a letra. Foi a última canção inteiramente composta por David Gilmour para o Pink Floyd e também sua última letra para a banda até 1987, com “A Momentary Lapse of Reason”. Foi tocada ao vivo duas vezes em dezembro de 1972 e quatro em março de 1973 com uma parte instrumental bastante longa não-presente na gravação de estúdio, exceto na sexta e última vez, quando apresentaram uma versão mais próxima àquela do álbum. Nos shows também era tocada um tom mais aguda. Nick Mason a tocou nas turnês de 2019 e 2022 da “Saucerful of Secrets” (clique na imagem acima para assistir).
08. Free Four
A música começa com uma contagem de rock and roll, mas neste caso o Pink Floyd decidiu brincar com a sonoridade das palavras e trocar “three” (três) por “free” (livre). Assim, uma possível interpretação para o título é “Quatro Livres“, talvez se referindo a eles mesmo. O clima divertido e leve permanece por toda a música, contrastando fortemente com a letra cínica e depressiva, uma das primeiras incursões de Waters (que também canta a faixa) por temas densos que se tornariam uma de suas mais reconhecíveis marcas registradas (a história trata dos “males” da indústria musical e também é a segunda vez – após “Corporal Clegg” – que Roger refere-se à morte do pai na 2ª Guerra Mundial). “Free Four” é o nome de um excelente tributo de Pink Floyd brasileiro que, apesar de apresentar toda a discografia da banda, tem como um dos pontos fortes o repertório inicial, razão principal pela qual foi convidado a tocar em 2018 no XXI “The Carnawall“, que comorava os 50 anos do álbum “A Saucerful of Secrets” (clique na imagem deles acima para assistir a uma música desse show, “Remember a Day“).

09. Stay
Linda balada cantada por Richard Wright, sendo uma de suas três únicas parcerias exclusivas com Waters (as outras duas são “Burning Bridges”, também desse álbum, e “Us and Them”, do seguinte). A história é sobre uma noite passada com uma groupie (apelido levemente depreciativo dado às fãs que seguiam as bandas), já que no dia seguinte (talvez com alguma influência do citado vinho) o eu-lírico nem se lembra do nome dela ao se despedir. A temática lembra bem a letra de “Summer ’68”, composta exclusivamente pelo tecladista, o que faz fãs suporem que ou ele teve participação na letra também ou Waters tinha a intenção de fazer uma versão alternativa, talvez outro ponto de vista da mesma história. A canção cresce ainda mais pela guitarra de David Gilmour usando o efeito chamado wah. Infelizmente, ela não aparece no filme e nunca foi tocada ao vivo pelo Pink Floyd ou por Rick.

10. Absolutely Curtains
O instrumental que fecha o álbum é a faixa mais longa e sem graça dele, bem abaixo da qualidade das anteriores, embora possa ser funcional como trilha incidental dentro do filme. Teclado e sintetizador crescem gradualmente até os três minutos e meio, sem muita dinâmica, exceto por um susto repentino (nos filmes de terror seria uma cena de “jump scare”) com um grito de “ahhhhhhh” aos dois minutos e 37 segundos. Na parte final o instrumental vai se intercalando e sumindo até ser totalmente substituído por um canto da tribo Mapuga do filme, da Nova Guiné. O que eles cantam é desconhecido (há mais de mil línguas e incontáveis dialetos entre os povos indígenas da ilha) e o Floyd recebeu a gravação da equipe de filmagens. O título pode ser uma referência ao vale buscado no filme pela protagonista e pelos exploradores, que era “obscurecido pelas nuvens“, e a razão dele ser secreto é que estaria “absolutamente coberto” (absolutely curtains).
Bônus: a Capa
Storm Thorgerson e Aubrey Powell, donos da Hipgnosis, a empresa responsável pela maior parte das capas do Pink Floyd, estavam vendo fotos do filme para se inspirarem quando o projetor travou e a imagem ficou embaçada. “De repente, diante de nossos olhos, a qualidade fora de foco imbuiu uma imagem comum de qualidades mais transcendentais”, escreveu Thorgerson em seu livro “Mind Over Matter“. “Ou foi o que dissemos a Barbet.” Como aquilo causava curiosidade e deixava a verdadeira imagem “escondida” – como o vale do filme – provocadores e anticonvencionais que eram (vide “Atom Heart Mother” e “Meddle”), a dupla gostou do resultado.
O diretor Barbet Schroeder… não.
Segundo ele, foi deliberado não ter uma capa tão boa que “competiria” com “The Dark Side of the Moon” (que já estava sendo gravado e seria lançado nove meses depois):
“Sabiam que tinham outro álbum vindo e não queriam que Obscured by Clouds roubasse o show”, ri Schroeder. “Então se certificaram de que a capa não tivesse muito apelo. Achei aquilo bastante divertido.”
Porém, Thorgerson declarou que a arte recebeu tanta atenção quanto qualquer outra do Floyd.
A foto está tão fora de foco que chega a ser difícil afirmar o que retrata.
Não é conhecida a imagem sem o efeito, mas assistindo-se ao filme, identifica-se a cena em que foi tirada, quando o personagem Gaëtan (interpretado pelo ator francês Jean-Pierre Kalfon) sobe em uma árvore e estende-se para apanhar um fruto.
Faça abaixo a comparação com um frame do filme:


Provavelmente não houve autossabotagem mesmo, Gilmour, mais tarde alegaria em uma rara explosão de entusiasmo que adorou todo o resultado final.
“Obscured by Clouds” foi o primeiro álbum do Pink Floyd a ultrapassar a marca dos 50 mais vendidos na concorrida lista da Billboard, nos Estados Unidos (chegou a 46º), e foi muito bem no Reino Unido, atingindo o sexto lugar.
Fato é que o álbum que viria a seguir estava muito fora da curva e sendo elaborado há muito tempo, embora algumas das virtudes de “Obscured by Clouds” já eram sinais claros do desenvolvimento da banda, que alcançaria inédito prestígio entre crítica e público no ano seguinte.
Nada seria como antes…